E Se fosse Consigo? Racismo em Portugal
Só ontem à noite é que vi a primeira reportagem do programa "E se fosse consigo?" da Sic, cujo tema era o racismo em Portugal. Adorei. Fazem tanta, mas tanta falta programas assim. Reportagens que nos obriguem a reflectir e que nos incitem a agir. É serviço público no seu mais puro sentido.
Sempre que o tema vinha à baila, com a família e amigos, eu sempre defendi "sim, em Portugal há racismo". OK, Portugal pode não ter casos extremos como os EUA, onde o número de negros assassinados pela polícia, supera (e muito) o dos brancos; da Itália, onde os próprios deputados brancos insultam deputados negros de "macacos" e outros adjectivos, etc., etc., etc. Mas façamos uma reflexão profunda.
Quantos de nós tivemos colegas negros na escola? Ou ciganos? Ou Indianos? Eu, assim de repente, conto um cigano apenas.
Desde 1974, quantos políticos negros?
Quantos presidentes, directores ou pessoas em carga de chefia?
Jornalistas? Apresentadores de TV?
Mesmo atores negros, aparecem apenas em telenovelas ou ficção histórica... a fazer de escravos, obviamente. E quando são histórias actuais, já se sabe que a "história" daquele personagem será a exposição ao racismo e, com sorte, a superação do racismo. Quando a minha mãe me disse que, por fim, ia haver uma telenovela com uma protagonista negra, acrescentou logo: "mas passa-se em Angola e vão falar de racismo". A sério? Não teremos todos nós amigos, vizinhos, colegas de trabalhos negros ou de outras raças e etnias? A ficção não devria ser mais... real?
Também na música sempre houve separação. Por isso, considero os Buraka Som Sistema tão, mas tão importantes em Portugal. Foi o começo de ver brancos e negros no mesmo espaço, a dançar a mesma música e a aceitação do kuduro e de algo "africano", como bom, com qualidade. Algo artístico. Recordo-me tão bem de nos tempos da universidade ir a um bar/discoteca de música africana com amigos e não haver mais nenhum branco por lá metido, sem ser eu ou alguém do meu grupo de amigos.
O desporto talvez seja a área mais democrática. Afinal, olha-se mais ao talento, do que à cor da pele. Todavia, nem o desporto é indiferente à questão racial, como todos sabemos. Basta recordar episódios como insultos, bananas e, claro, as claques no seu melhor! Haver em Portugal, uma estátua ao Eusébio, não torna o país não racista.
Recordo-me que quando a actual Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, tomou posse, isso foi notícia. Na reportagem da SIC falavam disso e remetiam para ela uma declaração em que a ministra dizia que em Portugal, sim, havia racismo, mas estava institucionalizada a ideia de que não. É que em Portugal, continuamos a olhar para o lado, com preconceitos disfarçados de "Eu não sou racista/homofóbico/xenófobo/etc., pois até tenho um amigo que..., mas..." E o problema vem depois do "mas". Mas "na minha família não", mas "para evitar sofrimento, é melhor que os meus filhos não", mas "até compreendo quem...", mas "é preciso ver que Portugal...".
Pois, Portugal. Esse país que durante séculos enriqueceu graças ao comércio de pessoas escravas e que até aos anos 70 travava uma guerra colonial. Obviamente, que o tema "racismo" é irrelevante e que "nós", portugueses, nada temos que ver com isso. Por tudo isto, usar o argumento que "Portugal é um país de brancos", daí não vermos mais negros nas mais diversas áreas, é, desculpem, uma treta. Há sim, falta de oportunidade. Amigos meus diziam que nas entrevistas de trabalho era sempre a mesma história: por telefone tudo bem, chegada ao local... "é mesmo Português?" ou "Fala mesmo bem."
Quando vi a reportagem da SIC dei por mim, como todos, a pensar: "o que faria eu se escutasse aquelas palavras?". Se fosse há uns anos atrás, sei que iria responder, retaliar. Mas agora... não sei se é porque estou a ficar velha, acomodada e/ou sem paciência para gente burra, mas a verdade é que não sei mesmo se me meteria. Acho até que teria até visto aquilo como um assunto pessoal. O que é errado. Racismo é crime. Tal como a violência doméstica. Devemos todos intervir, chamar a polícia até.
No Brasil, onde o racismo é discutido de forma diária, esta criminalização (de vez em quando, pelo menos) é levada de forma bem séria. Recordo-me de uma historia de uma adepta que insultou o jogador da equipa adversário, com comentários racistas. Foi filmada e criminalizada. E, claro, no século XXI isso significa também redes sociais. O caso ganhou proporções mediáticas, com a adepta a chorar baba e ranho na TV pública, a pedir perdão e a usar o argumento como o "calor e a paixão futebolística" como argumento.
E é argumento? Não. Não é, nem pode ser. Não pode ser mesmo. E vamos ser honestos e conscientes. Quantas vezes dissemos "branco de merda?" ou "corre, branco" ou "vai-te foder, branco do caralho?". Alguma vez ouviram isto? Obviamente que o racismo é um pau de dois bicos, de muitos bicos. De certeza que há brancos que já sofreram racismo. No entanto, tendo em conta a dimensão histórica, social, cultural, económica, entre outras, sem dúvida, que ainda é contra as pessoas negras que ele mais se manifesta. Milhões de pessoas foram escravizadas e ainda no século XX, a segregação racial era mesmo "uma coisa". Ainda hoje é. Uma mãe com um filho negro, sabe que o seu filho tem mais problemas de ser perseguido, agredido e até assassinado pela polícia do que uma mãe de um filho branco. Imaginem, agora, ter que viver com essa angústia.
"E se fosse consigo" fez ainda o velho exercício, da boneca branca e da negra, fazendo perguntas a várias crianças sobre "qual a boneca bonita?" e "qual a boneca má?". Ouvir crianças negras a dizer que não gostam da própria cor e que se acham feias pela cor que têm, foi avassalador para mim. Claramente estamos a fazer muita coisa mal. Precisamos de mais bonecas de todas as cores, de mais cantoras de todas as cores, de mais atores de todas as cores, de mais publicidades de todas as cores... precisamos definitivamente de um mundo com muitas mais cores.