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Maria vai com todos

Estórias. Histórias. Pessoas. Sítios. Viagens.

Maria vai com todos

Estórias. Histórias. Pessoas. Sítios. Viagens.

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Esta sou eu! Esta fotografia foi tirada no dia 3 de Junho, quando o meu irmão Tiago terminou a licenciatura em Direito. Pode não parecer, mas esse foi um dos momentos mais tristes da minha vida. Naquele dia, naquele momento e durante a fotografia ("mais para a esquerda", "agora levante o queixo", "um sorrisinho, doutor", "oh menina, endireite as costas!"...) eu só conseguia pensar em como o mundo era injusto e que má pessoa eu era.
Anos antes do Tiago entrar na universidade, eu chorei, implorei, gritei e ajoelhei-me, para que o meu pai me deixasse ir à universidade. Ele nunca deixou, disse-me que era hora era de "pensar num bom casamento". O meu pai nunca me deixou ir à escola, eu aprendi em casa a ler e a escrever com a minha mãe. Tive uma professora de Francês e com a minha tia Elisa, aprendi piano. As minhas primas iam à escola, mas eu nunca fui.
Quando o meu irmão mais velho, o José entrou na universidade, com ele, eu descobri um mundo novo. O meu irmão dava-me, às escondidas, livros para ler e muitas vezes, eu ficava com ele, enquanto ele estudava. Por vezes, até o ajudava com os trabalhos. Foi aí que decidi que queria ser médica também.
Do dia em que comuniquei a decisão ao pai, só me consigo lembrar das lágrimas da mãe. O pai ficou furioso - "o que esperavas?" perguntou a mãe! O pai gritava, falava em maridos. Disse que médicas mulheres era inúteis. Mais, disse que eu jamais conseguiria, que não podia entender os livros, os conceitos. Eud disse-lhe que sim, que seria capaz, que ajudava muitas vezes o José. Aí, ele ficou ainda mais furioso e acusou-me de mentir. Nunca o vi tão zangado. Nos anos seguintes, voltei a fazer-lhe o mesmo pedido. Falei-lhe de outras mulheres que estudavam, mas ele só respondia com doses de desprezo. Troquei até Medicina por Letras, pois a Tia Elisa dizia ser mais apropriado, mas em vão. Quanto mais ele dizia "não" á universidade, mais eu era categórica a dizer que "não" a futuros maridos.
Quando o meu irmão Tiago entrou na universidade, o meu pai ficou cheio de orgulho. Chamou toda a família e amigos e brindou com vinho do Porto. Na verdade, nunca ninguém esperou nada do Tiago e não foi surpresa para ninguém, quando demorou oito anos para acabar o curso! Uma vez, ouvi a tia Elisa dizer ao meu pais: "a tua filha já teria acabado o curso". O pai levantou-se e ele e a tia estiveram uma semana sem se falarem. Não me entendam mal, eu gosto do meu irmão. É o mais novo! Mas sempre que olho para ele vejo tudo o que me foi negado. Não sei se algum dia vou superar isto. Serei eu má pessoa?

 

 

*Nota: as histórias são 100% inventadas e pura ficção. Mas depois de ver estas fotografias,  foi como se muitas dessas vidas tivessem histórias por contar.

Ich bin ein Berliner

 

Quem vem viver na Alemanha, assim que chega aprende duas coisas:
1. Não fazer downloads - sim, aqui as multas chegam a casa. Mesmo com o streaming é preciso ter muito cuidadinho. E, note-se, por multas falo de 500 e mais euros.

2. Não usar transportes públicos sem pagar.


Em Berlim, entra-se e sai-se do metro e do autocarro, sem que seja preciso passar por qualquer tipo de cancela. Mesmo no autocarro, em teoria, deve-se mostrar o bilhete, mas isso nem sempre acontece a maioria dos motoristas, nem quer saber!

A verdade é que desde que vivo em Berlim, já passaram mais vezes por mim revisores do que em todos os anos da minha vida! Os senhores do BVG, sistema de transportes públicos de Berlim, não anda fardado, nem identificado. Do nada, lá se levantam eles, sacam da maquineta e alaaaaaa, vistoria a todos. Quem não tem bilhete, fica sinalizado na hora e saem na companhia dos revisores na estação seguinte. Já vi isto a acontecer e não há guinchos, berros, nem protestos. Tudo feito na máxima descrição e tranquilidade. Já lá fora, passa-se a multa, mostra-se uma identificação e ou se paga na hora ou se paga online ou num balcão BVG em duas semanas. 60 euros. Sim, a multa é de 60 euros!

 

Também eu já fui multada! Eua qui tenho passe e os dias são flexíveis, ou seja, não vão do dia 1 ao fim do mês. Deixei passar, esqueci-me e pau, multa.

Aqui há tolerância zero.
Tem bilhete mas não validou? Multa.
Tem o bilhete, mas deixou o passe em casa? Multa.
Perdeu o bilhete pelo caminho? Multa.
Fez o sentido inverso com o mesmo bilhete? Multa.
Passam 2h05 desde que picou o bilhete (o máximo são duas horas)? Multa.
E não vale a pena reclamar depois, mostrar provas, etc. Flexibilidade e tolerância zero. E quem não paga a tempo, paga mais tarde e com juros! Não se brinca com a BVG, até porque quem acumula três multas sem pagar, vai mesmo a tribunal! Já me disseram que a coisa pode acabar em tribunal, mas isso já me parece demasiado!

Estima-se que por ano, esta malta faça mais de 9 milhões só em multas. Quanto gastam em revisores, eu não sei.

 

Quanto à qualidade do serviço? Discutível, a pontualidade dos autocarros é zero, à noite, então... O sistema é aind a papel, nada modernizado, nem eletrónico, com bilhetes do século I  AC e nas estações de metro há falta de mapas. São também poucas as máquinas e as opções de viagens e, para Berlim, 2,70 euros por viagem é francamente caro. Mas sim, a linha é abrangente, passamos todos bem sem carro. O BVG é possivelmente daquelas coisas que amamos odiar. Até, porque é o local por metro quadrado com mais maluquinhos em Berlim e depois disto, até lhes passei a achar piada!

 

Ich bin ein Berliner

Uma das coisas que mais me tem fascinado aqui em Berlim é a relação que os pais têm com os filhos. As crianças aqui parecem mais livres, mais autónomas, mais capazes. Aqui é comum ver crianças de dois anos a andar em autênticas mini-bicicletas (sem pedais e sem rodinhas). Aos 6 anos (ou antes) já muitos acompanham os pais de bicicleta e vão de bicicleta sozinhos. Se apanha o metro e coincide com os horários de escola, é comum ver crianças de 0/10 anos a viajarem sozinhas ou na companhia de outros miúdos, sem a supervisão de um adulto.

Nos parques, mercados, etc. é comum ver as crianças a brincarem, sem adultos em cima delas. Os pais estão lá, obviamente, e estão de olhos, mas não estão em cima e dão-lhes espaços para brincar e respirar. Se um miúdo cai, o adulto não vai a correr. Se o puto chora, os pais não lhes dão o chocolate para a mão. Se o fedelho faz birra, não ganha colo. É muito comum ver os pais aqui a baixarem-se a falarem com os filhos, baixo e ao mesmo nível que eles.

E, por favor, não me venham com a história de que são frios, insensíveis ou sem criatividade. Há carinho, de uma forma bastante clara e demonstrada, escutam-se gargalhadas e as crianças riem. Nenhuma me parece triste, nem traumatizada. Também não sei se são mais felizes, até porque isso não se mede, mas mais do que nada, acho bonita esta ideia de deixa-los tão livres.

Mesmo eu, dou por mim por vezes a pensar "e se vem um carro?" e "se há um acidente?". Na Alemanha há um sistema e as pessoas esperam que a coisa funcione. Não é suposto os carros irem à máxima velocidade ou ciclistas saírem das ciclovias (nem carros irem na ciclovia), é com força e no hábito destas convicções, que os alemães se sentem confiantes com as crianças. Obviamente que "shit happens", mas isso está muito mais enraizado em mim cultural e socialmente, do que certamente num alemães. Se lhes dissermos isso, a resposta será "não, não acontece" e alguns poderão debitar mil estatísticas, onde a apenas um em 7823723 aconteceu. A minha tendência, enquanto portuguesa, é agarrar-me a esse um. A de um alemão não.

Em Madrid, sempre disse que queria ser uma velha madrilena e do bairro de Salamanca - e ainda quero.
Em Berlim, dou por mim a pensar, que quero ser uma mãe alemã.

16 Mar, 2016

Portugal Velhinho

"Fashion in Portugal", 1962. "Coitada, esta deve-se achar!"

 

Ups!

Ponta Delgada, anos 50. O senhor da fotografia não pode caminhar.

 

Construção da Ponte 25 de Abril. Aliás, Ponte Salazar.

 

VIPs nacionais.

 

Trás-os-Montes. Profissionalismo puro.

 

A minha favorita, sobretudo por causa da legenda "Portuguese spirit in its maximum, socializing outside during a flood, Coimbra - 1960"

 

Refugiados judeus, 1941 - e a prova de que este Mundo não aprende nada!

 

1936 - e a prova, de que afinal, havia mesmo muitos chapéus!

 

1917, a caminho de Flandres ou "dá-cá-beijinho"

 

Douro (anos 50 ou 60 - ou no ano passado)

 

Feira da Ladra, 1966 (ou Feira da Ladra, no domingo passado)

 

As modas em 1966 e em Cascais - se o Salazar visse isto, caía da cadeira!

 

Alentejo, 1955 (e nem um solinho)

 

Alfama, 1946 ou "tirem-me daqui!"

 

Vai uma pinga?

 

Mulher que é mulher posa para a fotogafiia e mais nada! Já está!

 

"Regresso de militares do Ultramar", 1962 

 

1974, porque o 25 de abril não foram só cravos!

 

Xixi e cama

 

Faro, anos 60. Deste Sal faz-se também Portugal

 

Show de bola e fair play! 

 

Setúbal, 1938. Sim, Setúbal. Portugal.

 

Anos 30, quando no Marquês não havia trânsito!

 

1917. Tanta gente, mas só os miúdos é que viram a senhora.

 

"Ai, menina, que tu nem sabes o que 'ma' aconteceu! 'Atão, não é que..."

 

Minho, 1932. Ou brunch em 1932.

 

Olhão, 1940. "São todos meus! Ainda falta aqui o meu mais velho, o António Manuel, que foi fazer um recado ao meu homem!"

 

Filho de Peixe

 

Rossio, 1891. Eram grandes, os pombos na altura.

 

A rotular o Mateus Rosé, 1940 

 

 

Ver mais fotografias AQUI, vale a pena.

Esta é a fotografia do momento do Brasil. Vamos pensar um bocadinho sobre ela?

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Contexto: protestos do domingo passado, no Brasil. Protesto contra a corrupção, contra Lula e Dilma, com direito a novo pedido de impeachment da Presidente do Brasil.

 

Numa primeira análise, a fotografia pode ser apenas cómica: ir protestar contra a corrupção e levar a ama dos filhos atrás? Melhor ainda, só ir protestar contra a corrupção, vestindo uma camisola da selecção brasileira, quando o futebol é um dos desportos mais corruptos do mundo!

 

Numa análise mais profunda, esta fotografia diz muito, mas tanto sobre o Brasil da actualidade e também muito sobre o mundo em que ainda vivemos. Ao contrário do que acontece em Portugal, em que o racismo, pobreza e desigualdades sociais é um "não-assunto", isso no Brasil não acontece. O uso massivo das redes sociais (o Brasil é o segundo país mais activo no Facebook), tem sido usado para denunciar, discutir e reflectir muitos destes temas. Mais, permite a vários grupos se organizarem e irem crescendo e um dos melhores exemplos disso, é o crescimento e a importância do movimento feminista no Brasil. Vários colectivos feministas do Brasil, usam as redes sociais, assim como blogues e outros recursos online para debaterem e sobretudo denunciarem as vítimas, histórias e números do machismo, mas também do racismo e da desigualdades do país.

No Brasil, como no resto do mundo, o racismo é uma realidade que anda tantas vezes de mãos dadas com a pobreza, falta de oportunidades, desigualdade e discriminação social. Racismo é crime no Brasil. E ao contrário do que nos vendem as telenovelas ou a Rede Globo, os brancos não são a maioria brasileira. Bem pelo contrário, o "Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria, com uma população estimada de 85 milhões, é o único país do mundo com uma população negra maior que a brasileira".

Assim sendo, como entender que haja tão poucos negros na TV? Ou na universidade? Ou com acesso a cargos de poder e/ou a ocupar cargos políticos?

 

 

Mas voltemos á fotografia. Nela vemos um casal branco de classe média, que no contexto português seria classe bem alta, que leva o cãozinho para a manifestação e a ama, a "baba" negra, que empurra o carrinho das duas filhas. Sabe-se que é a babá, porque está vestida de branco, a cor das fardas das amas no Brasil, que se usa para as "distinguir" do patronato. Ter uma ama é sinal de status e de poder social. A farda é também uma forma de a diferenciar, de a separar! E note-se que ela vai atrás.

Apenas recentemente, durante a presidência de Lula, as empregadas e trabalhadoras domésticas viram o seu estatuto profissional reconhecido e regulado, com direito a férias pagas, horários de trabalho, segurança social, etc. Na altura, muita gente (leia-se brancos, classe alta) saiu também à rua, para reclamar contra esta alteração, como se ao dar "direitos sociais" a uma classe, lhes fossem "retirados" direitos - onde já se viu: um patrão querer um copo de água às 22h00 e não ter quem o sirva?

No Brasil, tal como noutros países da América Latina, ter empregada interna, dessas que é "quase como se fosse da família" é comum. As casas estão inclusive desenhadas, com o típico "quartinho dos fundos", o "quartinho da empregada" - tal também é possível encontrar em Portugal, em casas mais antigas.

O governo de Lula e Dilma através de medidas como a Bolsa de Família tiraram milhões de pessoas da pobreza. Sair da pobreza é permitir às pessoas dignidade e oportunidade. Oportunidade de estudar, de ter tempo de qualidade com a família, de optar por um trabalho melhor, etc. Mas mesmo assim é triste continuar a ver tanta gente (privilegiada) de vistas curtas, cheias de ignorância e preconceito, incapazes de ver além do seu umbigo. 

 

E sim, ser ama, como qualquer outra profissão é digno. Nada disso está em causa. O casal da fotografia, veio até já mostrar a sua indignação, porque (até) pagam mais à babá que trabalha ao domingo - gosto sempre de pessoas que se vangloriam por fazer o que manda a lei. 

 

"O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados, cerca de 12,5 milhões de africanos foram seqüestrados da África como escravos, 2,5 milhões morreram nas viagens, quase 6 milhões de africanos desembarcaram no Brasil, quase 60% dos africanos foram trazidos para o nosso país, ficou fácil entender como o racismo aqui é mais cruel? Não? Desenhando!"

Um passado como este deixar marcas e, pior, não deixa de existir só porque há a abolição da escravatura. Como se vê na "fotografia do momento" esse tipo de modelos, continuam a reproduzir-se na sociedade de hoje. E, é por isso, que a imagem é tão poderosa.

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Bem no início, com a Petty. A sério, alguém consegue ver isto e achar que ela tinha (só) 15 anos? YAH!

 

Há precisamente, uma semana estava eu em Londres em contagem decrescente para ver Buraka Som Sistema.
Eu descobri Buraka em 2007. Adorava tudo: a música, as letras, a mistura! Estava-me bem nas tintas se aquilo era português, se era angolano ou de onde vinha. Aquilo sentia-se e era bom. E depois tinham a Petty, que apesar de ter 15 anos, era uma força incrível. A sério, a miúda era mesmo espetacular e fofinha - que é feito dela?
Em 2008 vi-os no Alive - ainda o Alive não era esta coisa louca de agora, cheia de merchandising e com pais e filhos na festa. Sinceramente, nem me recordo bem do que vi nessa noite, sem que na noite anterior, foi Queens of the Stone Age e que eu fui directa do trabalho com um vestido cor-de-rosa!
Na noite de Buraka, ninguém esperava nada deles - pelo menos ninguém que estava comigo! Eu mesma não sabia o que esperar de um concerto ao vivo! Eu insiti, insisti e foi espectacular. Assim mesmo, no sentido de espectacular, de espectáculo. Super empáticos com o público, cheios de energia, capazes de colocar toda a gente a dançar. O concerto acabou mais cheio do que quando acabou, o que mostra bem o carisma dos Buraka.

 

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No concerto da semana passada em Londres, onde mais de duas mil pessoas encheram o Electric Brixton e o carisma deles continuava lá. Mias um concerto, mais uma celebração! Eu não me lembro da última vez que dancei tanto.  Durante o concerto, fizeram a mesma coisa que tinham feito no Alive há anos atrás: mandaram o público baixar-se e saltar. Recordo-me de pensar: "caramba, mesmo com gente nova no grupo, músicas novas, diferente sonoridade e a essência continua cá". Nada de vedetismos, manias, nadinha! Continuam eles e fiéis a eles, porque mais do que nada, eu acho que os Buraka são uma celebração às coisas que são genuínas e verdadeiras, sem se preocuparem com rótulos ou em etiquetas.  E note-se que estamos a falar do grupo português mais internacional. Nesta digressão já passaram (e lotaram) por  Berlim, Paris, Amesterdão, Caracas e muito mais! E não, os concertos não são uma reunião de emigras! Havia gente de todo o lado, ouvi falar espanhol, italiano e inglês (e sim, também português).

Nos últimos anos, onde quer que ia e se falava de música portuguesa, falava de Buraka. Falava também do Tiger Man e de Dead Combo, mas Buraka, sem dúvida, era os que mais reacções positivas conseguiam. Seja porque já conheciam, seja pela vontade de passar a conhecer! Eu gosto de fado, mas, caramba, há mais do que isso em Portugal. Em cinco anos em Madrid, os únicos concertos de música portuguesa que apanhei era de fadinho, nada contra, mas e o resto? Acho mesmo que os Buraka Som Sistema era o nome mais conhecido, onde quer que fosse e acho que tem a ver com essa celebração, que ultrapassa idiomas, nacionalidades ou cores!
Espero mesmo que seja só uma pausa e que eles voltem, porque há poucas bandas que conseguem este efeito de "celebração"... wege, wege!

 

#10anosdeBuraka #10yearsofBuraka

 

 

11 Mar, 2016

#ViajoSola

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Marina Menegazzo e Maria José Coni

 

 

Só recentemente li a historia sobre as duas argentinas que viajavam pela América Latina, quando no Equador, foram agredidas, violadas, assassinadas, acabando o corpo de ambas num saco plástico.

 

Como viajante, não tenho palavras para descrever o horror que senti ao ler isto. E a tristeza. Pior ainda, fui ler alguns dos comentários que se produziram depois, que mostram, mais do que nada, uma falta de respeito às vítimas!

 

1. Elas eram duas. Elas não viajavam sozinhas. Ninguém viaja "sozinhas", uma mais um faz dois, logo é plural, não singular.

 

2. E mesmo que uma delas estivesse sozinha. Sim, há quem viaje sozinha e isso é bom! Não se é mal amado, não é sinal de falta de amigos ou família ou de se ser má pessoa. E mesmo alguém que seja tudo isto (e pior!), nada justifica um crime desta (ou de qualquer outra) natureza. Que fique claro, quem são as vítimas e quem são os criminosos.

 

3. Será que ter um homem com elas mudava algo? Acha que sim? Acha que não?
Seja qual for a resposta, vamos lá reflectir um bocadinho sobre isso, porque seja qual for a respostas não há uma que seja correra e ambas obrigam-nos a uma reflexão profunda. Ter um homem ao lado, impede mesmo a violência de género? Sabemos que não ou nem sempre. Na Índia, o amigo de Jyoti Singh foi também agredido e demorou dois meses a recuperar. A violência foi tão grande contra esta mulher, que os intestinos saíram do lugar - aconselho vivamente o documentário India's Daughter!

 

4. Como assim "com aquelas roupas estavam a pedi-las"?! Há mesmo roupa, seja um homem ou mulher, que estejam a pedir o que quer que seja? Quer isso dizer, que se eu vestir umas calças de cintura subida que estou a pedir um gelado? E já agora, no Equador em pleno verão, é suposto vestir-se o quê? Um casaquinho polar?

 

5. Obviamente que também li algures o "a culpa é dos pais"! Obviamente, a milhas de distância na Argentina, com certeza que foram eles a maltratar, violar e assassinar as próprias filhas. Filhas essas, que são duas mulheres adultas com vontade própria.

 

6. A ideia de que se "puseram a jeito", seja porque deveriam ter ficado em casa, na "segurança do lar" ou por qualquer outra coisa, deixa-me com nervoso miudinho. Vamos colocar homens, mulheres e crianças em casa, bem fechadinhos, para evitar crimes desta natureza. Melhor mesmo é nem sair porta fora.
Pior ainda é esta ideia de que a "culpa" é da vontade de viajar destas mulheres - tivessem elas ficado em casa sossegadinhas! Raios! Ir ao Equador é como estar em Lisboa e ter vontade de ir a Paris, isto é, elas não foram para uma zona de conflito, nem para um país onde as mulheres não possam votar! Foi no Equador e possivelmente poderia ter sido na Argentina ou no Brasil ou em Portugal! Não, este não é algo que só poderia ter acontecido na América Latina, vamos ser todos mais honestos (e inteligentes) que isso! 

 

A verdadeira reflexão que está a fazer falta é sobre os criminosos! O que levou aqueles homens a acharem que podiam forçar qualquer tipo de relação com duas mulheres? A não aceitarem um "não", a insistirem? A abusarem, violarem e matarem? Vamos aprender a questionar quem pratica o crime, em vez de agredir (uma e outra vez) as vítimas, sobretudo quando já nem cá estão para se defenderem!

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