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Maria vai com todos

Estórias. Histórias. Pessoas. Sítios. Viagens.

Maria vai com todos

Estórias. Histórias. Pessoas. Sítios. Viagens.

A Mariazinha trabalha em Madrid há dez anos. Eis algumas coisas que ela gostaria de partilhar.

Barrio de Las Letras, Madrid

Comer na Plaza Mayor é para turistas.
Assim como procurar e/ou tirar fotos no km zero em Sol.

Aprender castelhano ou falar bem em Madrid.
- Vocabulário laboral: mierda, joder, cabrón, hijo de puta, cojones, conãzo, etc.
- Vocabulário em bancos, serviços e afins: mierda, joder, cabrón, hijo de puta, cojones, conãzo, etc.
- Vocabulário do meio social e familiar: mierda, joder, cabrón, hijo de puta, cojones, conãzo, etc.
- Vocabulário infantil: mierda, joder, cabrón, hijo de puta, cojones, conãzo, etc.

Provas em como o portunhol nem sempre funciona, mas os madrilenos são os melhores do mundo.
Possíveis coisas ditas por um português, que claramente não fala espanhol, mas a quem confiança não falta - afinal português é a língua mais difícil do mundo e os portugueses tudo falam.
- Sí a ti te gusta a míe me encanta - demasiada pornografia nos anos 90 dá nisto. Ninguém diz isso!
- Que día tan quiente, lo sol esta quientísimo. -  O dia está sexy? On fire. E sem artigo, porfa.
- Hablamos en la segunda-fiera. - en lunes pá. E deixa o artigo.
- Hola, yo soy la Maria. - já avisei: deixa o artigo.
Reacção do espanhol que vive em Madrid a tamanho assassínio do seu próprio idioma:
- "Pero tu hablas muy bien, guapa!"

Madrid também tem clichés.
- "De Madrid al cielo".
- "El coño es masculino y la polla femenino."
-"Madrid no tiene playa o sería perfecta" - ou Barcelona!
-"El pescado más fresco de España está en Madrid! Y la água es la mejor del mundo!" - pois!

As frases mais ouvidas, quando se está com portugueses (em Madrid):
- "O café uma merda."
- "O café é caro."
- "Os Espanhóis não sabem fazer café."
- "O bacalhau é caro."
- "Aqui só comem fritos."

Ponto de encontro? O urso em sol.
Ou os escalones de Lavapiés ou a saída de metro de Tribunal.

Pipi na rua.
Fazer xixi na rua é tão comum aos 2 anos, como aos 72. E os cães fazem as suas necessidades junto aos parques infantis - por vezes, dentro dos parques infantis.

Em Madrid, ninguém sabe o significado da palavra silêncio. 
Ou melhor, ninguém sabe praticá-lo.Há restaurantes com a música de fundo mais alta do que muito discoteca.

Se é para ser velha, que seja antes uma velha madrilena. 
Dessas do bairro de Salamanca, de casacos de pele (e com buracos da traça), maquilhagem forte e que às 11 da manhã já bebem canãs, com os amigos.

Ressaca?
Museo del Jamón (ou qualquer outro local de tapas ou alegada comida espanhola) - 15 / MacDonalds

¡Hola! ¿Qué tal?
Todos os dias algum espanhol pergunta isto, mas ninguém quer saber qual será a tua resposta. Quando tu ainda estás a começara reformular a frase, já o perguntador saiu do teu alcance de visão. Quando até o senhor do banco pergunta como estás tu, fica claro que é apenas uma pergunta oh-pa-mim-a-ser-educado.

Festas de San Caytano, La Latina

Em Madrid, diz-me de que bairro és e eu digo-te o que os outros pensarão de ti.
Se vives em Salamanca, és pijo (leia-se beto e/ou cheio da pasta), possivelmente és de direita e até monárquico e compras o ABC ou o El Mundo.
Se vives em Malasanã, és um moderno. Um hipster, de gostos alternativos. És também alguém que gosta de sair à noite.
Se vives, em Lavapiés, votas no Podemos, vais às manifs e o dinheiro não abunda. Ou então és emigrante ou alternativo - afinal, quem vive de livre vontade num local tão perigoso? (leia-se "multi-cultural).
Se vives para lá de Cuatro Caminos és colombiano, peruano, brasileiro, argentino, mexicano, equatoriano,..
Se vives por Sol  ou no Bairro das Letras ou és um Erasmus cheio de dinheiro. Ou um estrangeiro cheio de dinheiro. Ou um espanhol cheio de dinheiro. Ou trabalhas na Montera.
Se vives na Chueca, és gay.
Se sempre viveste pelo centro e não és de Madrid, quando te falam de Vallecas, Alcobendas ou Rivas, a primeira coisa em que pensas é no IKEA e dizes que "isso não é Madrid?". Afinal, a Cova da Mora também não é Lisboa.

Confundir uma mulher vestida de chulapa, com uma sevilhana dá direito a pena de morte.

Sobre a monarquia espanhola, escuta-se:
O ex-rei é campechano. Ele consolidou a democracia em Espanha (??? Qual era a opção? Um reinado absolutista? Ou um regime fascista?). Ele caça elefantes, mete desculpas e anda metido com a Corina. Já foi mais vezes operado, do que o filho aclamado.
A ex-rainha é muito profissional e todos gostam dela, nem que seja nas sondagens da Casa Real. Ela diz que se converteu ao cristianismo, mas não engana ninguém e todos afirmam que é ortodoxa.
A Corina é uma das 877 mil amantes do rei. E no ano passado, por dois dias seguidos deu uma entrevista e apareceu na primeira página no El Mundo... por ser amante do rei.
O actual rei é o rei mais preparado de sempre.
A Letízia sabe quanto custa um bilhete do metro. Mas parece que ela nunca convenceu ninguém como jornalista e aquilo era tudo uma farsa, pois ela já namorava o rei, príncipe na altura. Veste-se bem, mas já comia uns churros.
Quanto às irmãs, há a feia e a outra, a que não se dá conta quando milhões de euros são depositados na conta bancária.

Os multibancos são leeeeeeeeeeentos.

Comer, aliás beber fora de Madrid e sem tapas (ou ter que pagar por elas) é um insulto.

A Espanha que conhecemos hoje, só existe como país desde o século XVIII. A primeira junção dos reinos das Espanhas, acontece com os Reis Católicos, que com o seu casamento (e muita violência e Inquisição) uniram os reinos de Castela e Aragão.
Apenas na cabeça dos portugueses é que os "espanhóis" sempre existiram. E:
- nem todos dançam flamenco;
- a cultura celta está fortemente presente na cultura asturiana, galega e basca;
- a paella é típica de Valência e é o nome dado ao utensílio em que se cozinha, não ao prato em si;
- muitos espanhóis nunca foram a uma tourada, quanto mais ver matar um touro;
- galego, catalão, asturiano, basco e até valenciano são idiomas e não dialectos.
A única coisa que toda a Espanha tem em comum e é indiscutível é a tortilla.

Aqui bebe-se Fanta de Limão.
E Fanta de Limão com vinho mau é um Tinto de Verano con Limon e é muito bom.

Chueca, Madrid

Não há cidade mais gay do que Madrid.

Sobre e para os portugueses:
-" Onde está o maior El Corte Inglés de Espanha? No Porto.
- Para Espanha ir à praia, Portugal tem que desaparecer.
- Antes, os espanhóis iam a Portugal comprar lençóis e panos de cozinha.
- Podem pôr sempre gasolina em Espanha.
-Mas tu gostas MESMO do Cristiano Ronaldo?
- Todos os portugueses falam inglês.
-O Mourinho é arrogante
-Na última coisa de futebol, Portugal jogou melhor que Espanha, mas fomos nós que passamos e ganhamos a Copa."

Aqui não há "doutores", nem "senhores engenheiros". 
O "você" quando muito usa-se numa primeira impressão, depois disso sempre o "tu" - tuteame, pedem. Aqui é comum o guapa ou o cariño.

Burocracia para estrangeiros:
- Sem o NIE (Número de Identificación de Estrangero) não se faz nada - nem multados somos.
- Em Madrid ainda não perceberam que estar na União Europeia é também aceitar os bilhetes de identidade de cada país-membro.
- Nem todos temos Passaporte ou precisamos de ter.
- Aprender espanhol é essencial.
- Para evitar uma conversa com um espanhol (em particular com a polícia), aconselha-se o inglês para logo em segundos, dar a conversa como terminada.

Retiro, Madrid

O Retiro  mola.
E ao domingo, o Rastro mola mais.

Andar de bicicleta é para heróis.
O metro antes era bem melhor. Os autocarros são uma maravilha, mas o trânsito lixa tudo. Andar de carro é para loucos. E estacioná-lo para os ricos.

Perguntas fofinhas, que é como quem diz de bradar aos céus:
- "Por que é que não és espanhola?"
- "Agora que estás aqui [em Madrid] há tantos anos, vais mudar de nacionalidade?"
-"Por que é que os portugueses são tão tristes?"
-"Filipe II foi MESMO rei de Portugal?"
-"Tens alguma doença?" - reacção a umas pernas incrivelmente brancas.
-"A sério? A cultura portuguesa tem influências árabes? Aqui em Espanha não!" - como? Azeite, Alhambra, amendoeiras, introdução de técnicas agrícolas, etc. Ou continuo?

Passar em Sol, significa dizer hola ao Mickey, ao Bob Sponja, ao Pocoyo ou a uma das Tartarugas Ninjas.

Por um euro, os chineses vendem latas de Mahou.
Se chega a polícia, eles fogem e escondem as latas nos bueiros do metro. Por um euro, vendem também tallarines.
Os melhores tallarines. de Madrid estão no chino subterrâneo, na Plaza de España.

Ninguém é de Madrid.
Os gatos são os que têm quatro avós madrilenos e são escassos. Mesmo assim todos levamos Madrid na pele.



Casamento em Udaipur, Índia
 

Ele era giro, giro, giro!
Ele convidou-as a entrar no atelier dele e foi à rua buscar três chás - dois deles "no sugar, no milk". Não que entendesse aquele pedido, mas também não discutiu com as possíveis comparadoras.
Lá dentro e com o chá entre as mãos, começou a falar dele, apesar de ninguém perguntar. Ele vinha do norte da Índia, do Rajastão, de uma pequena aldeia e há dez anos que vivia na cidade dos palácios indianos: Udaipur.

O Rajastão, no norte da Índia é uma das mais bonitas regiões do país, com as suas imponentes montanhas e belos palácios. As duas cidades mais conhecidas são Jaipur, a "cidade vermelha" e Udaipur, por vezes conhecida pela cidade de Aladino, devido aos seus românticos palácios.
Nijar deve ter cerca de 30 anos e deixou a sua aldeia quando tinha cerca de 16 anos e nunca mais voltou. Não sabe nada da sua extensa família, apesar de enviar dinheiro, mas segundo ele, ele nunca mais poderá voltar.
O Rajastão é uma das mais conservadoras regiões da Índia, onde o sistema de castas, apesar de ter sido abolido pelo Governo, é ainda muito forte. Aquando a independência da Índia, começou uma forte guerra religiosa entre cristãos, hindus e muçulmanos - sobretudo estes dois. É no Rajastão que vive o maior grupo de muçulmanos na Índia.
Os postais de elefantes, de mulheres de grandes argolas e brincos a unir as orelhas ao nariz e de garridos saris? Pois bem, bem-vindos ao Rajastão.
Niraj não foi à escola e nenhum dos irmãos nunca foi à escola. Os pais são agricultores, assim como foram os avós, os bisavós, os tetravós e sempre foi assim, desde que há memória da família. Segundo ele, a terra da família é fértil e boa, mas o dízimo? O aluguer? A quota? que pagam a uma outra família, deixa muito pouco para a grande família do Niraj.
"Mas por que é que lhes pagam se são vocês que cultivam? O terreno é deles? perguntou uma das raparigas. "Há um contrato?" continuou. Ele não sabe, da mesma forma que os pais não sabem, nem os avós sabiam ou os bisavós ou tetravós. Sempre foi assim e não há porque questionar isso.
Quando os pais detectaram que havia nele algo diferente, deram-lhe algum dinheiro e mandaram-no para Udaipur. A mãe fez uma grande comida e reuniu toda a família para se despedirem. Niraj sabia que não poderia voltar nunca mais. Era uma questão de honra.
Quando chegou a Udaipur, Niraj dormiu na rua e quando ficou sem dinheiro roubou.
Ele explicou às raparigas, que os indianos podem ser muito hospitaleiros, mas com os estrangeiros e ele não era dali. Era um estranho. Ainda hoje, com um negócio estabelecido e reconhecido ele continuava a ser um estranho. As pessoas eram mais simpáticas, mas Niraj sabia que havia coisas que lhe estavam vedadas, como casar ou ter família.
- "Mas tu também és do Rajastão" - disse uma.
- "Mas não sou de Udaipur" - respondeu ele.
- "Mas ninguém precisa saber que não és daqui. Udaipur é tão grande, por que não dizes que não és daqui?"- parecia tudo tão lógico para a rapariga.
- "Mas eu sei que não sou daqui" - determinou ele.

Pintura: mulheres do Rajastão, em Udaipur


Por fim, o menino perdido conseguiu um trabalho num atelier de pintura, de um artista que era também de outra cidade. Outro rapaz trabalhava lá e tal como ele, também revelava um talento inexplicável para as artes.
Os dois aprenderam com o Mestre as técnicas de pintura; o uso das tintas; a conjugar as cores fortes da região; estudaram os símbolos e os mitos, como os elefantes e os cavalos e durante anos, todos os dias, iam repetindo as mesmas histórias aos turistas estrangeiros que passavam por ali. Levavam-nos à loja e bebiam chá, enquanto falavam e falavam e falavam.
Foi assim que aprendeu inglês. Sabe também francês e um pouco de russo. Porém, ainda hoje não sabe escrever e não sabe mais nada sobre a família.

Os Três Vestidos

(Colecção Formiguinha, Editora Infantil MAJORA - Porto, Portugal)

Os Três Vestidos

Um viúvo tinha uma filha, que era muito bonita. Por ser muito bonita, ela chamava-se Linda Branca. É certo que "filho feio não tem pai", mas louvemos este pai e a sua capacidade de antever o futuro relativamente à formosura da sua filha, já no dia do baptismo.

Linda Branca cresceu sempre bonita, mas a vida não lhe sorria.
Quando a sua fada-madrinha lhe perguntou o que a "consumia", Linda Branca respondeu: "A minha beleza" - que mais poderia ser?! Linda Branca arrastava atrás de si uma verdadeira legião de admiradores e todos se queriam casar com ela, mas para ela era importante conhecê-los primeiro, o que é bastante compreensível.

A fada-madrinha, como todas as fadas-madrinhas logo se dispôs a ajudar. Com a sua varinha de condão, logo fez aparecer três vestidos (todos bonitos): um azul e cinzento, outro azul e prateado e um azul e dourado. Ordenou à afilhada que só os vestisse quando ela mandasse e que fosse ao reino ao lado (a quatro léguas) pedir trabalho no palácio. Mas antes transformou-a na mais "feia das mais feias".

Lá foi a feia Linda Branca e logo começou a trabalhar no palácio - outros tempos. 
Quando as festas chegaram e os bailes foram anunciados, a fada apareceu e ordenou-lhe que pedisse licença para ir ao baile. Perante o pedido de Linda Branca, a Rainha disse que ela teria de pedir autorização ao seu filho, o Rei (um pouco confusas estas relações reais e familiares no mundo da Formiguinha. Mas cada reino sabe de si e estamos no Reino da Formiguinha e não da Disney).
O Rei que na altura se encontrava em dificuldade para calçar as botas respondeu - e reescrevo:
- "Autorizo-te, maçadora, porém desaparece-me depressa da minha vista, senão atiro-te com uma bota!" - sem comentários!

Os Três Vestidos


A Linda Branca lá foi, com o vestido azul e cinzento, como a fada ordenou e txran: ficou bela e formosa como sempre.
Óoooobio que o Rei logo se apaixonou. Até, porque não falamos apenas de uma deslumbrante menina num vestido azul e cinzento. Não. A varinha de condão da fada cuidou de tudo e ela apareceu de coche puxados por seis cavalos brancos.
O Rei logo se enamorou e quando lhe perguntou de onde era, ela disse que era do Reino da Bota e foi-se, para tristeza do Reio (pobrinho!), embora.
No dia seguinte, novo baile e lá foi a nossa feia criada (não se esqueçam que sem os vestidos, ela é "feia entre as mais feias) pedir nova autorização ao Rei, que na altura tinha uma verdasca na mão e respondeu:
-"Vai, maçadora, porém desaparece-me depressa da minha vista, senão atiro-te com a verdasca!"

(Antes de prosseguirmos a história, eu esclarecerei o que é uma verdasca.E parece que além de ser uma localidade perto de Fátima,  uma verdasca é também uma pequena e flexível vara - o que faria o Rei com isto, meus amigos, eu não sei. Prosseguimos com a história?)

Segundo baile, segundo vestido (o azul e prateado). A Linda Branca mais linda do que nunca e o Rei ainda mais enamorado. Ela a ir-se e ele pergunta-lhe de onde era ela. Se comeria este Rei demasiado queijo ou se pensasse que ela era agora outra, isso a Formiguinha não explica. Só que desta vez, a resposta foi:
-"Sou do reino da verdasca". - ela foi-se e o rei ficou ainda mais apaixonado. A palavra "verdasca" causa este efeito nas pessoas desses os primórdios dos tempos.

Ao terceiro dia de baile, Linda Branca fez o seu pedido para ir ao baile, enquanto o Rei limpava a cara a uma toalha. E qual foi a resposta dele?
-"Vai, maçadora, porém desaparece-me depressa da minha vista, senão levas com a toalha!"
Um amor este Rei. Um exemplo de educação e respeito para todos nós. Assim, vale a pena ser monárquico.

Quando nessa noite, ele viu a Linda Branca no seu vestido azul e dourado, ela estava mais deslumbrante do que nunca e à pergunta de onde era ela (sim, ele voltou a perguntar) ela respondeu que era do Reino da Toalha e retirou-se.

O que o Rei era de bruto,  também era de sensível e com as saudades, "caiu gravemente doente". Os médicos recomendavam passeios no jardim do palácio
Num desses passeios, ele viu Linda Branca (versão boa como ao milho) e ao terceiro dia conseguiu por fim "apanhá-la", voltando-lhe a perguntar de que reino era. A resposta foi:
-"Sou do Reino da Bota, da Verdasca e da Toalha" - respondeu. Logo ali, o Rei pediu-a em casamento, mas a Linda Branca logo disse que isso dependeria do seu pai e da madrinha.
A fada-madrinha logo apareceu e quebrou o encantamento, passando a Linda Branca a ser linda como sempre fora, fosse com um casaquinho da Feira de Carcavelos, uma saia da Zara ou um vestido Channel. Dias depois, também o pai autorizou e os dois casaram-se, numa boda que durou três dias, informa a Formiguinha em tom de conclusão.




Querida Forimiguinha, que merda é esta?
Então, o Rei é mal-educado e parvalhão. Ameaça a feia da criada ora com uma bota, depois com uma verdasca e com uma toalha e tem direito a ser feliz para sempre?! Onde está a moral?
E além disso, vê a rapariga três vezes no baile e outras quantas no jardim e só sabe perguntar-lhe de onde é? Por que não lhe pergunta o nome? Em que trabalha? Ou simplesmente discutem sobre o existencialismo de Nietzsche ou sobre o actual egocentrismo digital, da nossa sociedade?
E quanto à Linda Branca? Ela é burrinha, certo? No início tanto drama, porque é bonita e quer conhecer os homens, pois eles só querem casar com ela por causa da sua beleza e não sei quanto mimimi e, no final, fica com um homem que só a tratou bem quando ela era gira?!
Qual vai ser a vida da Linda Branca? Ela vai envelhecer, engordar e ganhar estrias e celulite depois de ter filhos. E depois? Sim e depois, Formiguinha, o que vai ser dela? O Rei é mau, é má rés. A Linda Branca merecia algo melhor: uma carreira, viagens, um homem gentil e inteligente, com senso de humor - no mínimo!
E nem vamos falar dela ter que pedir consentimento ao pai e à fada-madrinha, Formiguinha! Nem falemos disso!

Os Três Irmãos e os Três Pretos

(Colecção Formiguinha, Editora Infantil MAJORA - Porto, Portugal)

Os Três Irmãos e os Três Pretos

Claramente esta é uma história sobre três irmãos e três pretos (também irmãos? Ou seriam primos?)
Os irmãos (obviamente bracos) são filhos do Tio Bartolomeu, um carvoeiro, que um dia vai à cidade, deixando os três irmãos ficam responsáveis pelo negócio familiar.

Durante a noite, o filho mais novo (o "dorminhoco - típico de filho mais novo) deixa que o "borralho" se apague. Para evitar que os irmãos lhe "ralhem", ele "mete-se pelo monte em busca de lume" (quem nunca fez o mesmo e foi pelo monte, às escuras e sozinho, à procura de lume, que atire a primeira pedra!).
Ele viu uma luzinha e "achou-se diante de três pretos, de argola de oiro na orelha, tamanhos e tão fortes como gigantes, que se encontravam acocorados" - a Formiguinha não conta, mas de certeza que também estavam nus, pois de gente desta não se pode esperar outra coisa*.
O irmãozinho dirige-se a eles, chamando-lhes "santinhos" e lá consegue que os "três pretos" lhe dêem um tição. O puto levou-o, mas logo se apagou. Ele voltou e "pelas alminhas" pediu um novo, que lhe foi concedido e também esse apagou. Depois e mesmo com medo dos "pretalhões", o bravo irmãos mais novo teve coragem para voltar e pedir um terceiro!

Quando chegou perto dos irmãos, estes já estavam acordados e só acreditaram no mais novo quando viram os tições, mas: oh magia! Milagre! Os tições eram agora barras de ouro.
Se uma cabeça pensa, três pensam ainda mais e nas duas noites seguintes, os outros dois irmãos fizeram o mesmo que o mais novo, passando a fortuna dos filhos do Tio Bartolomeu, de três a nove barras de ouro. Afinal, por quê morar num casebre, quando se pode viver numa vivenda junto do mar? 
Agora que eram ricos, os três decidiram também deixar de falar com o Tio Bartolomeu, porque "a gente rica ficava mal ter um pai carvoeiro" - justo!
Palácio, roupas, coche "tirado por seis cavalos branco" e toda uma vida digna de um entrevistado da Caras. Até que... pufffffffff: o fogo do fogão deixou de funcionar e, senhores, o frio que fazia!
Os manos logo mandaram um empregado, perdão, um "criado", assim relata a Formiguinha (e sejamos fiéis ao texto),  pedir fogo ao primeiro que passasse. E quem foi o primeiro?
Naaaa, do Tio Bartolomeu não saberemos nada mais!
Não foi um, não foram dois, mas sim "três pretos, grandalhões e com argola de oiro de oiro" descreveu o criado aos patrões.
Os três irmãos, que podiam ter frio, mas ainda tinham mais ganância, tiraram fora o tição. Afinal, se nove barras de ouro ("oiro") são boas, dez são ainda melhores. Porém, desta vez, o "tição em vez de se apagar, largou de si altas labaredas, que, dentro em pouco, consumiam o palácio"

No fim da história, a Formiguinha conclui: "Ai quem tudo quer, tudo perde"




*Nota: a Formiguinha não conta, mas claramente ilustra, como se vê na capa do livrinho. A Formiguinha não desilude e não deixa nada ao acaso.

Paris, França



Quando a menina, naquela noite fria em Paris, lhes perguntou como se tinham conhecido os dois, ela que até então tinha estado mais calada, respondeu logo.
- Nós conhecemo-nos quando estávamos os dois de Erasmus. Na altura não era nada sério, pelo menos para ele. E ele agora não admite, mas no princípio ele até tinha um pouco de vergonha de mim. Depois, quando regressamos os dois a França, ele disse-me que não queria mais nada comigo e para não nos vermos mais. Eu aceitei, porque sabia que ele haveria de voltar para mim. E assim foi: ele percebeu que não pode viver sem mim. E agora vivemos os dois aqui, em Paris.
A menina estava emocionada com a história, que lhe parecia tão romântica e perguntou-lhe se gostava de viver em Paris. E a rapariga disse:
- Não. É muito grande.

Rita

A Rita foi viver numa casa onde poucos gostavam de gatos.
O avô torcia o nariz aos bichos.
A avó sempre declarou preferir os cães.
Uma filha era alérgica.
Já a outra filha, ela sempre recusou à sua filha um animal de quatro peixes ("muito trabalho", "responsabilidade!" e "as férias?").
O pai sempre dizia "Eu não quero cá bichos!"
A neta mais velha ficava (aliás, ainda hoje fica) nervosa com gatos.
A mais nova antes, e tal como agora, não lhes toca.

Mesmo assim, a Rita entrou lá em casa.
Uma gata pequenina, de olhos claros, que brincava com todos e trepava pela toalha. Ela foi lá para casa, para ajudar a neta mais nova a perder o medo dos animais - sem resultados.
Passados onze anos e a Rita morreu.
Todos sentem muito a falta dela.

O avô só fechava arrecadação depois da gata já estar aninhada na roupa para lavar - mesmo que isso implicasse ir duas ou três vezes à rua, durante a noite, para confirmar que ela já dormia.
A avó deixava-lhe leitinho aquecido pela manhã e tirava-lhe as espinhas ao peixe - "coitadinha, pode engasgar-se".
A filha alérgica olhava a gata nos olhos, cada vez que falava com a Rita.
A outra filha comprava-lhe e dava.lhe a pílula, metida num bom e gordo troço de queijo.
O pai era quem mais lhe dava comida - a Rita era gorda. E quando a gata chegava à sala, miava junto ao sofá e o pai chegava-se um pouco para a esquerda, para a gata se sentar, entre ele e o braço do sofá.
Quando a neta mais velha estava, a gata deitava-se ao colo dela. Se eram só as duas deitadas no sofá, então, era ainda melhor. Aí, a Rita esticava-se na barriga dela e as duas ficavam assim frente à televisão.  Quando a neta mais velha não estava em casa, a Rita dormia a sesta dentro da guarda-roupa dela.
A neta mais nova, nunca acarinhou a Rita, tocava-lhe só com a pontinha dos dedos, mas muito orgulhosa do seu feito. Todavia, até ela aprendeu a deixar a gata entrar em casa ou a dar-lhe prioridade na hora de escolher o cadeirão onde se sentar.

A Rita morreu e todos sentem muito a falta dela.
01 Out, 2014

As heroínas

Groningen, Holanda

O roque e a amiga deixaram a Turquia, depois de um semestre de Erasmus e ala! Suiça, França, Alemanha e Holanda.
Já passava da meia-noite, quando de autocarro chegaram por fim à Holanda, deixando Bremen (Alemanha) para trás.

Groningen é uma pequena cidade holandesa, cheia de bicicletas e verdes parques. Tem um bonito centro e uma Universidade. Dias mais tarde o roque e a amiga visitariam a grande biblioteca com cacifos e portas de supermercado.
Era em Groningen, que o canivete suíço vivia e foi Erasmus durante um ano.

O roque e a amiga saíram do autocarro e como o canivete suíço não chegava, elas sentaram-se no chão, na beira da estrada e esperaram.
Não fazia mal esperar. Isso não importava. Elas tinham chegado à Holanda, há meses que não iam a casa ou beijavam a família, mas tinham viajado, tinham rido muito e dificilmente alguma coisa poderia ser melhor do que aquilo. Viram paisagens que só conheciam dos livros, conheceram pessoas que lhes mudaram a percepção dos livros de História e ensinaram um pouco de Portugal. Mesmo entre as duas, meses depois e ainda havia muito para conversar.

Logo depois (ou muito tempo depois - quem vai saber?), o canivete suíço chegou. Beijos, abraços, muita alegria e mais beijos e abraços.
- Bem-vindos à Holanda - disse o canivete suíço rindo-se, enquanto erguia o braço, mostrando um charro.
O canivete suíço sentou-se com o roque e a amiga e juntas fumaram. E riram mais. E falaram ainda mais. Naqueles tempos os silêncios não existiam, nem as queixas ou desilusões.
Um polícia chegou e explicou que não se podia fumar na rua, que teria que multar as três. Elas apagaram o charro, pediram desculpa e foram absolvidas as três.

Era incrível como mesmo estando longe durante todos estes meses, as três estavam tão iguais e partilhavam sentimentos tão idênticos.
Todas confiantes, no futuro e na vida. Sabiam o que queriam, admiravam-se pela capacidade de terem ido para longe, de cozinharem e de lavarem a sua própria roupa. Mas sobretudo de conseguirem ser tão felizes. Felizes em países desconhecidos, vivendo com uma língua desconhecida, onde por vezes sem sabiam o que comiam.
Fizeram amigos, falaram em inglês, regatearam em turco, caíram de bicicleta, aprenderam a parar um dolmus em turco, saltaram num barco, beijaram e até choraram.

Havia nelas quase uma arrogância, como que uma prepotência justificada, num momento em que elas eram as suas próprias heroínas.